Para a Renovação.
É um texto um bocadinho longo, escrito por um voluntário da GASPorto, mas que vale a pena ser lido, na minha opinião. :)
"Todos os anos abundam os votos, os desejos de um bom começo, muito sucesso, muito amor. Em cada Natal, assim como em cada Ano Novo, há uma corrente de amor e de sinceridade – assim aparenta – que percorre o mundo. Queremos que todos sejam felizes, todos cumpram os seus sonhos, todos progridam e se tornem em pessoas mais alegres e realizadas. Fala-se em amor, fala-se em paz. Na boca de cada um há sempre uma palavra bonita, um conceito elevado, como se cada um reconhecesse de facto o que é isso de paz, de amor, e como se realmente desejasse e afirmasse na sua vida a partir desse momento essas verdades, praticando-as com fervor. Eu próprio já escrevi poemas, já exortei à compreensão, ao voluntarismo e à caridade como caminhos fundamentais para que o mundo se torne pelo menos mais digno. A realidade, porém, é pesada e não tarda a afundar de novo todas as exortações tão bem intencionadas, para que caiam, mais uma vez, no esquecimento até que um novo Natal ou um novo ano as resgate do fundo do inconsciente colectivo.
É triste, porque o mundo não melhora a cada ano que passa. Todos reconhecem o valor dos ideais elevados, mas no geral, a forma de agir repete-se indefinidamente, os mesmos ódios, as mesmas intrigas, o mesmo egoísmo disfarçado, a mesma hipocrisia. Nas suas vidas normais é raro que alguém responda ao mal que lhe fazem com o bem - nem pensar, isso ainda é visto como «dar a parte fraca»! Em Israel e na Palestina continua a filosofia do «Olho por olho, dente por dente»; os grandes continuam a resolver os problemas, já em si radicados no ódio, fomentando ainda mais ódio. «Nunca cortes o que pode ser desatado», li eu algures e não me esqueci nunca mais. Tanto a uma escala mais pequena, na nossa vida de todos os dias em que somos como actores que representam incessantemente, é difícil cultivar a paciência de resolver as situações mais delicadas desatando o nó – é mais fácil cortá-lo. Porém, ao cortar estragamos o fio, e já nem podemos amarrar nem coser…Os grandes fazem a guerra porque a força é uma tentação de quem tem muito poder. Não significa inteligência, mas pobreza de espírito. O que parece ficar resolvido à força de obuses há-de voltar contra nós com muito mais intensidade e de uma forma muito mais indomável. É só uma questão de tempo…
(...)
Na verdade, aquilo que quero neste texto breve é fazer diferente do que se tem feito por aí. Não pretendo só exortar vagamente ao amor, à paz, e todos esses ideais elevados. Quero dar alguns métodos práticos para o crescimento individual. Porém, faço aqui um aviso que considero importante. Podemos aprender a crescer. Há maneiras e formas de viver e de agir que nos podem tornar pessoas melhores e, por inerência, mais felizes. Peço que não se confunda isto com as célebres receitas do seja feliz que se encontram nas prateleiras da secção espiritualidades de qualquer livraria. Qualquer receita dessas só pode ocultar mentiras e sobretudo enormes perigos. Não se é feliz primeiro e, só depois, uma pessoa melhor. É-se primeiro uma pessoa melhor e, só depois de muito exercício, muita meditação sobre questões essenciais e sobre os problemas da vida através de um perspectiva alargada e séria, é que se pode atingir um determinado estado de calma e de paz interior que nos dá – só nessa altura – condições para então buscarmos essa felicidade legitima que a que todos temos direito. Peço que se atente a isto muito seriamente.
De facto para o ano que se avizinha exorto - embora não diga absolutamente nada de novo - ao Amor. Como? Já o disseram muitos outros antes de mim, entre eles o nosso amigo Cristo a quem devemos em parte a sociedade que somos hoje. Mas só em parte, diga-se, porque também somos filhos de Maquiavel, só como exemplo…
Queremos amor, certo? Todos queremos amor. Todos nos achamos com direito ao amor, todos nos achamos com direito de pedir aos outros que nos amem, todos nos achamos no direito de possuir o amor dos outros. Devemos questionar em primeiro lugar que tipo de Amor é que na realidade queremos. Se um amor frágil, fundamentado em sentimentos do momento, volátil e sujeito às intempéries, ou por outro lado um amor resistente, sólido, que não pretende possuir nada nem ninguém mas somente dar-se. Isto mais uma vez parece vago. Façamos pois exercícios para treinar este amor. Já falei em trabalho social. É uma forma de aprender a amar, mesmo quando não há contrapartidas imediatas. Trabalhar com idosos ou crianças carenciadas e difíceis obriga-nos a pôr de parte a possibilidade do outro nos devolver o amor, e cultivar a necessidade de procurar mais profundamente sinais dessa resposta. Sendo que naturalmente olhamos para uma mulher ou um homem com certo interesse consoante a beleza física, é também natural que nos sintamos mais atraídos ou sintamos «amor» por aqueles que nos podem oferecer alguma coisa em resposta ao nosso esforço. Pois entendamos que há um amor maior que pode resultar de um esforço maior. Procurar quem não tem nada para nos dar é uma forma de cultivar esse «amor maior». É lógico que também estamos em busca de alguma coisa que o outro nos possa dar, estamos sempre, não há um altruísmo absoluto, mas é de facto melhor para todos se devagar cada um de nós aprender a amar de uma forma mais ampla, ouvindo e cultivando a paciência, sorrindo perante a felicidade de que já não se está só porque há de facto quem precise de nós e quem desse tudo para nos ter por perto. Há coisas simples no nosso dia a dia para quem não tem grande tempo para trabalho social. Em primeiro lugar podemos aprender a olhar nos olhos quem fala connosco. Podemos aprender a cumprimentar olhos nos olhos, mão firme e sorriso nos lábios. É uma boa forma de dizermos «estamos aqui, sou teu irmão, posso ajudar-te?». Temos que acabar com os olhares desconfiados na porta do prédio, os bons dias meio sussurrados a olhar para o chão. Somos todos irmãos e, como tal, o facto de não nos conhecermos não nos torna diferentes uns dos outros e muito menos inimigos. Temos de ganhar coragem para falarmos a quem não conhecemos, no metro ou na rua, como se o víssemos todos os dias. Temos de ganhar coragem para sentarmos ao nosso lado na mesa do café o mendigo que nos pede cinquenta cêntimos e a nossa companhia, como já fiz uma vez. A não ser que seja proibido no estabelecimento junto com a proibição à entrada de animais. Nesse caso não tenhamos medo de protestar e de acompanhar o nosso homem à rua e prometer que não voltamos a pôr os pés num café estilo apartheid.
Em pequenos gestos podemos cultivar o amor todos os dias. Quando tivermos vontade de gritar com alguém procuremos entender que o que enviamos vem de volta. Assim procuremos convencer pela razão e menos pelo barulho… Só leva a que fiquemos com dores de cabeça e a garganta arranhada, e se a outra pessoa não tiver hipótese de resposta porque é frágil ou menos dotada, o que acabamos por fazer é semear o ódio que à força de um tempo retorna em forma de vingança. E sobretudo, temos de aprender a aceitar compromissos. Quando dissermos sim a alguma coisa saibamos ultrapassar dificuldades de uma forma madura para honrarmos esse sim. Não passemos a vida a dizer sim a tudo já com o contrato de rescisão anexado. Assim não damos tempo para desenvolver esse amor verdadeiro, construído, cimentado – a cumplicidade de quem já partilhou vivências. E não falo só do casamento, mas das relações em geral.
Amor, amor! Que mais posso dizer sobre o cultivo do amor que desejo para o ano que vem? Perdoar, a forma mais elevada de amor. O perdão tem um efeito bloqueador do ódio. Se alguém nos ofende e retribuímos, recebemos o ódio e voltamos a enviá-lo. Provavelmente continuaremos nisto até o ódio crescer de tal forma que se torne uma barreira irredutível entre nós. É um exercício de compreensão. Durante os meses de Agosto e Setembro, enquanto estive em Moçambique em missão, visitei a prisão da Macia, a vila onde estive. Compreendi como, as pessoas que lá estavam presas, não podiam ser vistas apenas e só como criminosos institucionalizados, que mereciam deveras o castigo pelos crimes que cometeram. Julgá-los de cima para baixo iria, provavelmente, fazer-me sentir um certo ódio por eles, neste caso, um certo desprezo. Quando estivesse entre eles não estaria a ajudá-los, não estaria a transmitir-lhes confiança e humanidade, mas só e apenas distância, o que lhes daria ainda mais razões para se auto-marginalizarem. Não. Preferi cumprimentá-los de mão aberta, de olhos nos olhos, de sorriso nos lábios. Uma palavra de compreensão, uma balela de entendimento e já era como eles. Foi o suficiente para se sentirem homens, que como sabemos é difícil num país com uma democracia deficiente, uma justiça de acordo, e uma educação nada melhor. Perdoar é acordar nos outros a sua humanidade mais profunda, mostrar que depois do erro há uma possibilidade de superação, e lá estaremos ao lado prontos para ajudar, como fez Gandhi ao suportar no corpo as vergastadas da policia inglesa na Índia colonial. A sociedade não é perfeita, está muito longe sequer de ser boa. Prender, matar, executar é só uma prova de que ainda estamos longe de resolver os nossos problemas mais sérios. Prender, matar, executar, até abortar, é a prova de que algo está seriamente a falhar, ou já falhou de todo na sociedade.
E quanto à paz que se deseja também por esta altura? Está intimamente ligada ao amor? É claro. O amor tem de ser amplo, a paz não foge à regra. A paz tem de ser a capacidade de estar sereno durante as maiores tempestades, embora seja das coisas mais difíceis que se possa pedir a um ser humano. A paz tem de vir de dentro, porque se estiver dependente do que está fora de nós, ou daquilo que não depende da nossa vontade, então nunca seremos paz – porque ter paz significa ser paz -. Certo, mais uma vez vago demais não é? Exercícios para ter paz: não é muito diferente do que já disse. Se fizermos por ter/dar amor, teremos paz. Se fizermos um esforço por nos tornarmos donos do que temos, e não escravos, será mais uma razão para não perdermos a calma quando não pudermos comprar o carro de que gostávamos, ou o telemóvel que andamos a namorar. Tudo depende de exercitarmos a nossa liberdade, porque a liberdade é isso mesmo – um exercício da vontade verdadeira. Se ouvirmos uma boa musica, se fizermos um esforço por captar a beleza mesmo quando não vemos senão escuridão, então saberemos que mesmo na adversidade podemos ter paz e sorrir. Temos de ter coisas para fazer e construir. Um conselho: se não tiver nada para fazer não caia na fácil tentação de ligar a tv e ver a novela x ou fazer zapping ad aeternum. É fácil, mas é extremamente deprimente. Leia coisas, saia à rua, fale com pessoas. Sinta que está a desenvolver, sinta que em cada coisa que faz, em cada coisa que diz há mais uma coisa que aprende, há mais um neurónio que acorda do seu sono milenar, há mais um degrau ultrapassado no seu crescimento pessoal. Agostinho da Silva dizia que para o homem talvez não seja essencial ser feliz, embora seja de facto essencial ser alegre. Tenha motivos para se alegrar. Admire-se com o mistério de uma noite estrelada, ou com um pensamento, ou uma obra de arte que o ultrapasse. Mas uma coisa eu digo e repito: ter paz não é um caminho fácil, mas difícil. É importante que saibamos distinguir entre uma paz medíocre, que é aquela que resulta do medo que fazer algo, de arriscar por vezes, essa paz que é aquela de que falava o Pessoa, «Triste de quem é feliz/ contente com o seu lar/ sem que um sonho num erguer de asa/faça até mais rubra a brasa/ da lareira a abandonar.». Aconselho a que faça, arrisque, vá à procura. Será mais satisfatória a paz associada à vitoria, do que a paz no sopé da montanha, onde só paira a sombra das alturas que se podiam ter atingido, mas por medo, não se atingiram. Saiba porém bem aquilo que procura. Não se meta em empresas por causa do lucro, por causa de bens materiais ou outras coisas afins. Se vai, então vá por aquilo que de facto vale a pena. Proponho um exercício: quando agarrar no cajado ponha a pergunta e visualize – serei uma pessoa melhor e mais pacifica depois disto? Então vá.
(...)
Ruben David"